DIÁRIO DOS DIAS MORTOS
Para meu querido irmão Raimundo Venceslau dos Santos (agora no plano astral); que amava demais Bertold Brecht)
Conto de Rosa Kapila
"I. pergunta: o que está fazendo? - respondo que estou
muito ocupada - preparo mais um erro."
(Sopro de Brecht)
Desde minha infância sinto uma grande ansiedade com os dias que antecedem o Natal e vão até primeiro de janeiro. Os famosos dias mortos. Não há aula, não há aluno... as escolas ficam fechadas e as ruas viram um tormento. Nesse ano eu e I. não viajamos. Há pelo menos vinte anos não acontecia isso comigo. Tenho tido muitos sonhos premonitórios e por essa razão prefiro ficar em casa. Véspera de Natal pedi a E. que fizesse uma massagem em meu pescoço... ele olhou meu ombro e disse você está com um cancezinho aqui no ombro, uma pinta estranha. Não disse nada e liguei pra meu irmão. E. falou que estou com um câncer de pele. Meu irmão disse: câncer nada.
Eu e I. fomos para a Tijuca passar o Natal. Eu, morrendo de medo dentro do ônibus, pouca gente na rua. Não dormi porque estranhei a cama, parecia cheia de calombos. Eu não faço comidas, essas coisas porque I. é natureba. Cenoura assada, não dá. Comprei uma galinha, daquelas que giram nos ferros e têm gosto de isopor. O restaurante que vende galeto na brasa estava fechado. Dia 25 comi a galinha sozinha, enquanto I. foi à praia. Eu não fui porque preciso escrever minha obra e quem bate muita perna não pode ser escritor.
Estava eu à janela olhando a ponte Rio Niterói quando ouvi gritos - um homem recitava lá embaixo, na pracinha. O celular toca: é I. com medo de subir a rua porque ouviu os gritos do homem - estava na Riachuelo. Falei pode subir ele recita Edgar Allan Poe e Baudelaire. O homem sabia de cor "O Corvo" "Anabel" "Berenice" "A uma passante" "Um cego olhando pro céu". Estava escuro lá embaixo, mas peguei meu binóculo e olhei - "parece que eu conheço esse homem". Parecia um conhecido da Faculdade de Letras, da década de 80. "Coitado" pensei. Logo I. chegou esbaforido de fome. Falei tem cenoura, brocólis e umas rabanadas que nem sei se acertei fazê-las. Estão boas - disse enchendo a boca. E esse cadáver aí? Perguntou quando viu a galinha. O cadáver é meu, estou comendo.
Os filhos, às vezes são muito incovenientes. Principalmente nesses dias mortos. Mas o pior estava por vir. Na famosa quinta-feira com os atentados aos ônibus e delegacias. O Rio virou um inferno. De manhã cedo sacudi I. "Os bandidos atacaram o Rio". Ele disse thaw, estou com sono. Antigamente era só a solidão dos dias mortos, agora aquilo... gente queimada por facínoras.
Voltei para minha pesquisa e para os contos que estava escrevendo: Frutinho e Os sapatos de Bertold Brecht. Olhei para os dez livros em meu redor: Uma biografia de mil páginas de Albert Camus, um livro chamado Azeitonas (maravilhoso), a biografia de Françoise Sagan, cinco peças de teatro de Brecht e mais Organon. Um dos Diários de Brecht - que de diário não tem nada. Ah com a fome que estou comeria uma porção inteira de um texto inédito de Brecht. Sempre tive medo de ler Brecht inteiro com medo que faltasse livro dele para minha velhice. Faço seis coisas ao mesmo tempo, sempre fiz muitas coisas ao mesmo tempo. Admiro em mim essa capacidade de ser parabólica. Telefono para algumas pessoas e nada. Suzana Vargas e Antonio Carlos Rocha sumiram... ligo e só ouço um apito no telefone.Consigo falar com Jader que agora alugou uma casa na beira de um rio em Magé, um lugar lindo. Jader me dá uma notícia triste - seu galo Carlos morreu. Um dos cachorros mordeu a asa de Carlos. A vizinhança disse mata e come. Jader disse jamais e chorou. Carlos tinha dez anos. Ganhou um túmulo no quintal com foto e tudo. Jader plastificou a foto. Eu conheci Carlos, era carinhoso entendia o que Jader falava. É, meu amigo, como dizia Fernando Pessoa: somos um cadáver adiado.
Escrevo em meu diário e meu caderno dos sonhos. Faço anotações: sopros de Brecht. Parodio Brecht deslavadamente. Onde será que Brecht achou inspiração para aquela franjinha lambida? Como se inspirou para dar vida A Mãe Coragem? Uma mulher diferente, cheia de energia, força, selvageria, prudência. Como se cria uma personagem daquelas?
I. diz que me odeia porque como cadáveres. E eu sonho com umas costelinhas de porco assadas na brasa e um baião de dois com coentro.
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Escrito por Rosa Kapila às 20h34 [(0) Comente] [envie esta mensagem] [link] | |
domingo, 14 de julho de 2013
DIÁRIO DOS DIAS MORTOS (ROSA KAPILA)
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