domingo, 14 de julho de 2013

DIÁRIO DOS DIAS MORTOS (ROSA KAPILA)


                        DIÁRIO DOS DIAS  MORTOS
Para meu querido  irmão   Raimundo Venceslau dos Santos (agora  no plano astral); que amava demais  Bertold Brecht)
                                  Conto de Rosa Kapila
          
                                   "I. pergunta: o que está fazendo? - respondo que estou
                                    muito ocupada - preparo mais um erro."
                                    (Sopro de Brecht)
 
      Desde minha infância sinto  uma grande ansiedade com  os dias  que antecedem o Natal e vão  até primeiro de janeiro. Os famosos  dias mortos. Não há aula, não há aluno... as escolas ficam fechadas e as ruas viram um tormento. Nesse ano  eu e I. não viajamos. Há pelo menos vinte anos não acontecia isso comigo. Tenho tido  muitos sonhos premonitórios e por essa razão  prefiro ficar em casa. Véspera de Natal pedi a E. que fizesse uma massagem em meu pescoço... ele  olhou meu ombro e disse   você está com um cancezinho aqui no ombro, uma pinta estranha. Não disse nada e liguei pra meu irmão. E. falou que estou com um câncer de pele. Meu irmão  disse: câncer nada.
     Eu e I. fomos para a Tijuca passar o Natal. Eu, morrendo de medo dentro do ônibus, pouca gente  na rua.  Não dormi  porque  estranhei a  cama, parecia cheia de calombos. Eu não faço comidas, essas coisas porque I. é natureba. Cenoura assada, não dá. Comprei uma galinha, daquelas  que giram nos ferros e têm gosto de isopor. O restaurante que vende  galeto na brasa estava fechado. Dia  25  comi a galinha sozinha, enquanto I.  foi à praia. Eu não fui porque preciso escrever minha obra e quem bate muita perna não pode ser escritor.
     Estava eu à janela olhando a ponte Rio Niterói  quando ouvi gritos - um homem recitava  lá embaixo, na pracinha. O celular toca: é  I. com medo de subir a rua  porque  ouviu os gritos do homem  - estava na Riachuelo. Falei pode subir  ele recita  Edgar Allan Poe e Baudelaire. O   homem sabia  de cor "O Corvo"  "Anabel"  "Berenice" "A uma passante" "Um cego olhando pro céu". Estava escuro lá embaixo, mas peguei  meu  binóculo e olhei  - "parece que eu conheço esse homem". Parecia  um  conhecido da Faculdade de Letras, da década de  80. "Coitado"  pensei. Logo I. chegou esbaforido de fome. Falei  tem cenoura, brocólis e umas rabanadas  que  nem sei  se acertei fazê-las. Estão boas -  disse  enchendo a boca. E esse cadáver aí?   Perguntou quando viu a galinha. O cadáver é meu, estou comendo.
     Os filhos, às vezes são muito incovenientes. Principalmente nesses dias mortos. Mas  o pior estava por vir. Na famosa quinta-feira com os atentados aos  ônibus e delegacias. O Rio virou um inferno. De manhã  cedo sacudi I. "Os bandidos atacaram o Rio". Ele disse thaw, estou com sono. Antigamente era só a solidão dos dias mortos, agora aquilo... gente queimada por facínoras.
     Voltei para minha pesquisa e para os contos que estava escrevendo: Frutinho e  Os sapatos de Bertold Brecht. Olhei para os  dez livros  em meu redor: Uma biografia  de mil páginas de Albert Camus, um livro chamado Azeitonas (maravilhoso), a biografia de Françoise  Sagan,  cinco peças de teatro de Brecht e mais Organon.  Um dos Diários de Brecht  - que de diário não tem nada. Ah  com a fome que estou comeria  uma porção inteira de um texto inédito de Brecht. Sempre tive  medo de  ler Brecht inteiro com medo que faltasse  livro dele para minha velhice. Faço   seis coisas ao mesmo tempo, sempre fiz muitas coisas ao mesmo tempo. Admiro em mim essa capacidade de ser parabólica. Telefono para algumas pessoas e nada. Suzana Vargas e Antonio Carlos  Rocha sumiram... ligo e só ouço um apito no telefone.Consigo falar com Jader que agora alugou uma casa na beira de um  rio em Magé, um lugar lindo. Jader me dá uma notícia triste  - seu  galo Carlos morreu. Um dos cachorros  mordeu a asa de Carlos. A vizinhança disse mata e come. Jader   disse jamais e chorou. Carlos tinha dez anos. Ganhou um túmulo no quintal  com foto e tudo. Jader plastificou a foto. Eu conheci   Carlos, era  carinhoso  entendia  o que Jader  falava.  É, meu amigo, como dizia Fernando Pessoa: somos um cadáver adiado.
     Escrevo em meu diário e meu caderno dos sonhos. Faço anotações: sopros de Brecht. Parodio Brecht  deslavadamente. Onde será  que Brecht achou inspiração  para  aquela franjinha lambida? Como se inspirou  para dar vida  A Mãe Coragem?  Uma mulher diferente, cheia de energia,  força, selvageria, prudência. Como se cria uma personagem daquelas?
     I. diz que me odeia porque como  cadáveres. E eu sonho com umas costelinhas de porco assadas na brasa e um baião de dois com coentro.
 
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Escrito por Rosa Kapila às 20h34
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